sábado, 23 de março de 2013

TEMPO E PRIMAVERA













FALA DAS AVES

Ó homens cuja natureza é obscura,
ó homens semelhantes à raça das folhas,
ó gente impotente, feita de lama,
irmã gémea da sombra,
ó seres efémeros e sem asas,
ó mortais infortunados,
ó homens vagos como os sonhos
- volvei para nós a vossa atenção,
para nós que somos imortais e vivemos nos ares,
que nunca envelhecemos, que pairamos no éter
com pensamentos eternos
e colocamos, em tudo,
o segredo da perene juventude!

Aristófanes,
in As Aves,
versão de David Mourão-Ferreira

quinta-feira, 14 de março de 2013

HABEMUS PAPAM



Saiu por quatro vezes fumo negro
Das altas cúpulas do Vaticano
E à quinta em branco vimos o segredo
De em cento e quinze haver um papa humano.
 
Deus não achou um justo pra salvar
Do fogo e enxofre a fétida Sodoma
E Nero não podia mais cantar
Seus versos líricos na imunda Roma.
 
Chegou do fim do mundo um Cardeal
Trazendo de Francisco o Bem e a Paz
Para evitar na Igreja outros desaires.
 
É tempo de extirpar o grande mal.
Que Deus o ajude agora a ser capaz
De tudo renovar com buenos aires.
 
Abel da Cunha
 


 

sábado, 9 de março de 2013

O HARMÓNIO










 
 

(Sátira com todo o respeito)
 
Num canto da Igreja um harmónio
Gemia de palheta deslassada
Além dos foles rotos. O demónio
Não respondia bem à pedalada.
 
Que havia de dizer o César Franck
Se ouvisse distorcer as suas peças
Pousadas a dormir sobre a estante
Com pautas tresmalhadas e às avessas?
 
Foi meu avô comprar o instrumento
A Singeverga quando o Convento
Inaugurou um órgão mais canónico.
 
O Abade agradeceu. Num desaforo
Pô-lo num canto não o quis no coro
Onde moderno brilha um eletrónico.
 
Abel da Cunha
 

sexta-feira, 8 de março de 2013

CARAVELA AO MAR






 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
E amanhece…
E entreabrindo, como o dia,
As pálpebras, benzendo-nos, dizemos:
- Abençoe o Senhor os nossos remos
Em justiça
   Em firmeza
   E em poesia!

   Pedro Homem de Mello

JARDINS














Um pequenino parque de camélias.
Onde era uma frondosa Nespereira
A sombrear as vides há roseiras
De flores brancas rubras amarelas.

Onde caíam frutos caem pétalas.
Quando o Senhor vier agora à Beira
Na floração da Páscoa verdadeira
Terá de novo o chão coberto delas.

Noutro jardim cursei filosofia.
Era em Abril. Num campus de alegria
Colhi a rosa entre canções de gesta.

Passava o rio Douro e a cidade
Vivia em alvoroço a liberdade
Numa utopia de trabalho e festa.

 
Abel da Cunha

terça-feira, 5 de março de 2013

IMPROVISO



 
 
 
 
 
 
 
 
 
Glória aos poetas de Portugal.
Glória a D. Dinis. Glória a Gil
Vicente. Glória a Camões. Glória
a Bocage, a Garrett, a João
de Deus (mas todos são de Deus,
e há um santo: Antero de Quental).
Glória a Junqueiro. Glória ao sempre
Verde Cesário. Glória a António
Nobre. Glória a Eugénio de Castro.
A Pessoa e seus heterónimos.
A Camilo Pessanha. Glória
a tantos mais, a todos mais.
- Glória a Teixeira de Pascoais.

Manuel Bandeira

segunda-feira, 4 de março de 2013

AO PIANO














Na Bouça dos Bacelos as mimosas
Floriam cedo mais as giestas bravas.
A primavera entrava pelas casas
Com andorinhas de asas sinuosas.

As minhas primas vinham pressurosas
Calcorreando o longe das estradas.
Traziam novas de pequenos nadas
Para contar às manas ansiosas.

Na sala havia chá a conversar
Enquanto dedilhava sonatinas…
Depois valsavam Viúva de Lehar

O Conde LuxSentindo tristes fados
Que Lágrimas Celestes de meninas
Brilhavam nos seus olhos namorados!

Abel da Cunha
Imagem (www): Miriam Schapiro
Alexandra Exter (My Fan is Half a Circle), 1994