terça-feira, 2 de abril de 2013

PORTUGAL PEQUENINO













A Maria Angelina

Não sei do teu retrato onde ficou
Mas na memória não ficou perdido;
A mão de Columbano o desenhou
Num gesto simples de arte acontecido.

Talvez esboço de maior pintura
     Onde coubesses junto do Escritor:
     Figuração humana da ternura
     A recobrir de azul espanto e dor.

   Havia em casa um livro dedicado
     Ao pai para que lesse ao seu menino.
     Na capa tinha duas andorinhas.

   Voei com elas sempre deslumbrado
     No céu de Portugal tão Pequenino.
     Senhora do Alto das saudades minhas!

     Abel da Cunha





Raúl Brandão e
Maria Angelina
(Pintura de Columbano)

sábado, 23 de março de 2013

TEMPO E PRIMAVERA













FALA DAS AVES

Ó homens cuja natureza é obscura,
ó homens semelhantes à raça das folhas,
ó gente impotente, feita de lama,
irmã gémea da sombra,
ó seres efémeros e sem asas,
ó mortais infortunados,
ó homens vagos como os sonhos
- volvei para nós a vossa atenção,
para nós que somos imortais e vivemos nos ares,
que nunca envelhecemos, que pairamos no éter
com pensamentos eternos
e colocamos, em tudo,
o segredo da perene juventude!

Aristófanes,
in As Aves,
versão de David Mourão-Ferreira

quinta-feira, 14 de março de 2013

HABEMUS PAPAM



Saiu por quatro vezes fumo negro
Das altas cúpulas do Vaticano
E à quinta em branco vimos o segredo
De em cento e quinze haver um papa humano.
 
Deus não achou um justo pra salvar
Do fogo e enxofre a fétida Sodoma
E Nero não podia mais cantar
Seus versos líricos na imunda Roma.
 
Chegou do fim do mundo um Cardeal
Trazendo de Francisco o Bem e a Paz
Para evitar na Igreja outros desaires.
 
É tempo de extirpar o grande mal.
Que Deus o ajude agora a ser capaz
De tudo renovar com buenos aires.
 
Abel da Cunha
 


 

sábado, 9 de março de 2013

O HARMÓNIO










 
 

(Sátira com todo o respeito)
 
Num canto da Igreja um harmónio
Gemia de palheta deslassada
Além dos foles rotos. O demónio
Não respondia bem à pedalada.
 
Que havia de dizer o César Franck
Se ouvisse distorcer as suas peças
Pousadas a dormir sobre a estante
Com pautas tresmalhadas e às avessas?
 
Foi meu avô comprar o instrumento
A Singeverga quando o Convento
Inaugurou um órgão mais canónico.
 
O Abade agradeceu. Num desaforo
Pô-lo num canto não o quis no coro
Onde moderno brilha um eletrónico.
 
Abel da Cunha
 

sexta-feira, 8 de março de 2013

CARAVELA AO MAR






 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
E amanhece…
E entreabrindo, como o dia,
As pálpebras, benzendo-nos, dizemos:
- Abençoe o Senhor os nossos remos
Em justiça
   Em firmeza
   E em poesia!

   Pedro Homem de Mello

JARDINS














Um pequenino parque de camélias.
Onde era uma frondosa Nespereira
A sombrear as vides há roseiras
De flores brancas rubras amarelas.

Onde caíam frutos caem pétalas.
Quando o Senhor vier agora à Beira
Na floração da Páscoa verdadeira
Terá de novo o chão coberto delas.

Noutro jardim cursei filosofia.
Era em Abril. Num campus de alegria
Colhi a rosa entre canções de gesta.

Passava o rio Douro e a cidade
Vivia em alvoroço a liberdade
Numa utopia de trabalho e festa.

 
Abel da Cunha

terça-feira, 5 de março de 2013

IMPROVISO



 
 
 
 
 
 
 
 
 
Glória aos poetas de Portugal.
Glória a D. Dinis. Glória a Gil
Vicente. Glória a Camões. Glória
a Bocage, a Garrett, a João
de Deus (mas todos são de Deus,
e há um santo: Antero de Quental).
Glória a Junqueiro. Glória ao sempre
Verde Cesário. Glória a António
Nobre. Glória a Eugénio de Castro.
A Pessoa e seus heterónimos.
A Camilo Pessanha. Glória
a tantos mais, a todos mais.
- Glória a Teixeira de Pascoais.

Manuel Bandeira

segunda-feira, 4 de março de 2013

AO PIANO














Na Bouça dos Bacelos as mimosas
Floriam cedo mais as giestas bravas.
A primavera entrava pelas casas
Com andorinhas de asas sinuosas.

As minhas primas vinham pressurosas
Calcorreando o longe das estradas.
Traziam novas de pequenos nadas
Para contar às manas ansiosas.

Na sala havia chá a conversar
Enquanto dedilhava sonatinas…
Depois valsavam Viúva de Lehar

O Conde LuxSentindo tristes fados
Que Lágrimas Celestes de meninas
Brilhavam nos seus olhos namorados!

Abel da Cunha
Imagem (www): Miriam Schapiro
Alexandra Exter (My Fan is Half a Circle), 1994
 

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

VITORINO NEMÉSIO













VITORINO NEMÉSIO
(1901-1978)

 
NOMEIO O MUNDO

Com medo de o perder nomeio o mundo,
Seus quantos e qualidades, seus objectos,
E assim durmo sonoro no profundo
Poço de astros anónimos e quietos.

Nomeei as coisas e fiquei contente:
Prendi a frase ao texto do universo.
Quem escuta ao meu peito ainda lá sente,
Em cada pausa e pulsação, um verso.

In O Verbo e a Morte, 1959

 
POEMA

Venham os nomes tíbios,
O vagar delgado e glúteo dos fonemas,
Coroar delfins de sangue e sal – anfíbios
Sistemas de palavras: os poemas.

E desçam do alto ozone carbogáseos
Conglomerados de significação
A coroar-te, Leda etérea. Traze-os
Tu mesma à doce fala e à imaginação.

De topázios não falo, que carregam
Teus dedos nus de rápidas cintilas,
Nem dos amino-ácidos que os regam

Nem da feliz artrose do teu ombro
No beijo de saliva que titilas
Ao cisne branco, todo pluma e assombro.

In Revista Presença (número especial), 1977

 

domingo, 24 de fevereiro de 2013

SERENATA




Uma guitarra antiga nos penedos
   Tangida por Virgílio ou por Horácio
   Em ritmo de balada. Ágeis dedos
   A repicar nas doze cordas de aço.

   Cantavam como Hilários! Arremedos
   Em tom bemol com um vibrato lasso
   Até que a Aurora viesse manhã cedo
   Render a lua branca no espaço.

   Os trovador’s chegavam da Lamela
   Dos Gémeos do Brasil de Bugalhós
   Da Bouça Riba d’Ave…  A sua voz

   Batia suavemente nas janelas.
   E a porta já sem trinco ou fechadura
   Abria-se à saudade e à ternura.

   Abel da Cunha

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

LIBERTAÇÃO















Menino doido, olhei em roda, e vi-me
Fechado e só na grande sala escura.
(Abrir a porta, além de ser um crime,
   Era impossível para a minha altura...)

   Como passar o tempo?...E diverti-me
   Desta maneira trágica e segura:
   Pegando em mim, rasguei-me, abri, parti-me,
   Desfiz trapos, arames, serradura...

   Ah, meu menino histérico e precoce!
   Tu, sim!, que tens mãos trágicas de posse,
   E tens a inquietação da descoberta!

   O menino, por fim, tombou cansado;
   O seu boneco aí jaz esfarelado...
   E eu acho, nem sei como, a porta aberta!

   José Régio
   in Biografia


   

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

AO PÉ DA LARANJEIRA














Que lindas as laranjas! Sua cor
É o seu próprio nome entre o verde
Das folhas persistentes. Qualquer sede
Em doces gomos morre de sabor.

Que lindas as laranjas! Que fulgor
De sol na sua face! Quem escreve
Aqui no duro tronco um nome breve
Que permanece enquanto o tempo for?

E que memórias vão neste lugar
Levadas no correr da mesma água
Chegando até ao fundo da raiz!

Também meu nome inteiro irei gravar
Com fio de aço que não mais se apaga
No pé da laranjeira: na matriz.

Abel da Cunha

RICARDO III















RICARDO III
segundo Shakespeare
 
Nas casas de Lencastre e de Iorque
Andou acesa a guerra entre as rosas;
De quem havia atrás de cada morte
A Torre escura não mostrava as provas.
Corria sangue azul de estirpe nobre
   Afeita a nobres gestas nobres causas.
   Enfraqueceu o reino e um duque torpe
   Subiu ao trono com jogadas falsas.
   Estive em Warwick. Assisti ao drama
   Do bardo do Avon bem imaginado.
   Jogava a torre o bispo o rei a dama
   Em ombros de peões vis aclamado.
        Mas no lance fatal nenhum vassalo
      Quis apostar no reino o seu cavalo.

Abel da Cunha

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

NA EIRA

 

 
 
 
 
José Malhoa
"Milho ao Sol"
 
 
 
 
 
Há quanto tempo o milho está na eira!
Depois das estações não anda o rodo
A resguardar no alpendre o ouro todo
No fim de tanta tarde soalheira?
 
Já não se ergue o malho. A canseira
Não segue regular o velho modo
Em que o suor se vê em cada poro
Como a água fluindo na regueira.
 
Já não há espigas nem morrão nem barbas
Nem milho rei das noites desfolhadas
Ao som dos beijos e da concertina.
 
Nem desce da colina o bom moleiro
Que vem trocar os grãos do meu celeiro
Pela brancura fina da farinha.

 
Abel da Cunha



segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

PORTUGAL

 
 
 
 
 
MIGUEL DE UNAMUNO
Ignacio de Zuloaga
 
 
 
 
Del atlántico mar en las orillas
desgreñada y descalza una matrona
se sienta al pie de sierra que corona
triste pinar. Apoya en las rodillas
 
los codos y en las manos las mejillas
y clava ansiosos ojos de leona
en la puesta del sol; el mar entona
su trágico cantar de maravillas.
 
Dice de luengas tierras y de azares
mientras ella sus pies en las espumas
bañando sueña el fatal imperio
 
que se hundió en los tenebrosos mares,
y mira cómo entre agoreras brumas
se alza Don Sebastián, rey del mistério.
 
Miguel de Unamuno
in Rosario de Sonetos Líricos (1911)
 


HANNIBAL







 
 
 
 
 
 
HANNIBAL
Sébastien Slodtz, Museu do Louvre




Deixai tocar a tuba clangorosa
Que faz mover a máquina da guerra.
Em guerra vai Cartago poderosa
Marchando contra o céu e contra a terra.

Deixai passar a turba numerosa
Por sobre a neve atravessando a serra
Atrás dos elefantes. Como ousa
Hannibal ir onde só Roma impera?
 
Dos deuses carregava um juramento:
Vingar o vil tributo dos romanos
A ferro e fogo e sangue violento.
 
Atormentou a Itália por dez anos.
Mas de regresso a casa em Cartago
Bebeu entre ruinas vinho amargo.
 
Abel da Cunha

------------------------------------------------

Vinse Anibàle e non seppe usar poi
ben la vittoriosa sua ventura;
però, signor mio caro, aggiate cura
che similmente non avegna a voi.

Francesco Petrarca, Rimas (103)

Venceu Aníbal, sem saber após
usar vitoriosa tal ventura;
mas, caro senhor meu, hajais vós cura,
não vos suceda a mesma coisa a vós.

(Versão de Vasco Graça Moura)