sexta-feira, 30 de novembro de 2012

SCHERZO










Hesíodo e a Musa
Gustave Moreau

 
Quando, ainda jovem, comecei
a submeter-me à disciplina das Musas,
   uma delas tomou-me pela mão
   e, depois, todo aquele dia
   andei com ela às voltas
   a ver a oficina.
   Mostrou-me, uma a uma,
   as ferramentas da arte
   e os diversos usos
   a que cada uma delas
   se ajusta no trabalho
   da prosa e da poesia.
   Eu olhava e perguntava:
   Musa, onde está a lima? Disse a Deusa:
   a lima gastou-se; agora passamos sem ela.
   E eu acrescentei: mas, se ela está gasta,
   não é preciso substituí-la?
   Respondeu-me: é preciso substituí-la, mas não temos tempo.
 
   Giacomo Leopardi
    Canto XXXVI - Trad. Albano Martins

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

EVERMORE (Para Florbela)













Ao ler um dia versos de Florbela,
entrou na minha sala uma andorinha;
trazia o peito branco como ela,
e, como ela, asas negras tinha.

Não era o corvo no umbral da porta,
dizendo "nunca mais" - o seu refrão -
ao jovem que chorava a noiva morta,
a quem tivera entregue o coração.

Brilhava nela o sol da primavera
com sua claridade branda e pura.
Dizia "sempre mais", ficando à espera
que terminasse o encanto da leitura.

Depois esvoaçou, tomou alento,
e foi perdidamente com o vento.

Abel da Cunha

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

CORAÇÃO








Rosa Ramalho
Cristo em terracota



Preguei numa moldura o coração
e pendurei-o na parede. Ao lado,
um Cristo em terracota. Devoção
de alguém que ali o pôs crucificado.

Mas não ganhei com isso a remissão
das penas que trazia do passado.
O peito ficou oco, e a razão
com um discurso frio e transtornado.

Retive o coração no seu lugar.
Sei que tem erros, mágoas no sentir,
como tem a razão no seu pensar.

Chego à janela, abro e vejo rosas.
E o Cristo em terracota a refulgir
com cinco chagas rubras preciosas.

Abel da Cunha