terça-feira, 23 de outubro de 2012

PRESÉPIO







Presépio
Machado de Castro


Sinto nas mãos o musgo do presépio
que levantei no átrio do Convento;
de São Francisco imitei o afecto
ao celebrar o santo nascimento.

Dei muitos passos pelo monte acima
colhendo tufos verdes sem descanso;
cantava no moinho a pucarinha
enquanto ao fundo ia o Sizandro.

Não tive mais no tempo igual cuidado.
Hoje encontrei pedaços desse barro
que recriou perfeito o auto mudo.

Tirei do pó a vaca e as ovelhas,
pastores, anjos, magos e as estrelas.
Mas onde o sonho que animava tudo?

Abel da Cunha

domingo, 21 de outubro de 2012

OS GATOS






Manuel António Pina
Sabugal 1943 - Porto 2012


Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem

Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa

Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos

Manuel António Pina
in Como se desenha uma casa


quinta-feira, 18 de outubro de 2012

AMÁLIA







 
 
 
 
 
 

Amália
Lisboa, 1920-1999
 
 
no barco negro em que vogaste
pela fímbria do mar da tua voz
abriste uma vela e desfraldaste
a saudade toda que há em nós.
 
deste-nos, em fado, essa tristeza
feita só de sombras e ternura,
onde morava o espinho da incerteza,
cravado na seda da amargura.
 
de olhos fechados foi que procuraste
o acorde final, aquele que não mente,
por ser essência eterna da canção.
 
uma guitarra ferida nos deixaste
companheira dessa voz gemente,
xaile do teu rebelde coração.
 
 
Adalberto Alves
in No Vértice da Noite