sexta-feira, 25 de novembro de 2011

À POESIA (Filinto Elíseo)








FILINTO ELÍSEO
nasceu em Lisboa
a 23 de Dezembro de 1734.



ODES

À Poesia

Quando, assentada no sublime Pindo,
     C'os puros olhos, cercas
As maravilhas da alma Natureza,
     Oh divina Poesia,
Com arraiadas roupas a Eloquência
     Vem sentar-se a teu lado,
E te brinda c'o as jóias mais custosas
     De seu caudal tesouro.
A Música te embebe nos ouvidos
     O dulcíssimo canto,
Mede as vozes, os mélicos te ajusta,
     Altivos devaneios.
Também desce do Olimpo, em branca nuvem,
     Urânia, que se cobre
C'o largo manto azul entretecido
     De fúlgidas estrelas;
Com elas vem alados pensamentos,
     Trazendo em cofres de ouro
Profundos cabedais de ímprobo estudo,
     Aos céus, à terra, aos mares
Pela aguda, tenaz Filosofia
     Com fadiga arrancados.

Filinto Elíseo

A Bocage

Lendo os teus versos, numeroso Elmano,
E o não-vulgar conceito e a feliz frase,
Disse entre mim: "Depõe, Filinto, a lira,
     Já velha, já cansada;
Que este mancebo vem tomar-te os louros
Ganhados com teu canto na áurea quadra
Em que ao bom Córidon, a Elpino, a Alfeno
     Aplaudia Ulisseia."
Rouca hoje e sem alento a minha Clio
Não troa sons altivos, arrojados:
Vai pedestre soltando em frouxo metro
     Desleixadas cantigas.
Desceu Apolo e o coro das Donzelas
À morada de Elmano; e esse que, outrora,
Canto nos dava nome, o pôs na boca
     De novo amado cisne.

Filinto Elíseo


Repto de Bocage

Zoilos, estremecei, rugi, mordei-vos!
Filinto, o grão cantor, prezou meus versos.
Sobre a margem feliz do rio ovante,
De onde, arrancando omnipotência aos Fados,
Universal terror vibrando em raios,
Impôs tropel de herois silêncio ao globo,
O imortal corifeu dos cisnes lusos
Na voz da lira eterna alçou meu nome.
Adejai, versos meus, ao Sena ufano
De altos, faustosos, marciais portentos,
E ganhando amplo voo após Filinto,
Pousai na eternidade em torno a Jove.
Eis os tempos, a inveja, a morte, o Letes
Da mente, que os temeu, desaparecem.
Fadou-me o grão Filinto um vate, um nume;
Zoilos, tremei! Posteridade, és minha!

Manuel Maria Hedois Barbosa du Bocage

O CAVADOR








O CAVADOR
Estátua de Costa Mota
no Jardim da Estrela



Já não se ouve a roda dos trabalhos
a madrugar serena pela rua;
sucumbiram as patas dos cavalos
que tiravam a força da charrua.

Não crescem mais abrolhos nas videiras
nem saltam cães brincando pelas ervas;
caiu suor de sangue sobre as leiras
e a claridade transformou-se em trevas.

Foi quando a primavera abriu a porta
do seu jardim florido natural,
e quando as andorinhas já de volta
enchiam de alegria o seu beiral,

que novamente ergueu ao céu a enxada
caindo em fim na terra abandonada.

Abel da Cunha
Pombal, 21-03-2011

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

FRUTO SELVAGEM





Ricardo de Saavedra
jornalista e escritor,
nasceu em Lisboa (1941)



Na língua recta incandescente
de repente vejo
corpo nu e em frente
vestidos de nada e caju
dois frutos postos de guarda
                 dois frutos tensos   bicudos
                 nos goivos dum tronco nu

mas demora se demora a caminhada
e a longa   longa estrada
vazia de ninguém
pesa peso de pressa no pedal
dos meus cento e trinta à hora

na língua recta incandescente
duma viagem passada
               de repente
eram dois frutos de guarda
nos goivos dum tronco nu




Ricardo de Saavedra
in Azimute de Marcha (1988)

DAS MAGNÓLIAS








Daniel Faria
nasceu em 10 de abril de 1971
em Baltar, Paredes



Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página
E aproveito o facto de teres chegado agora
Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia.
A magnólia cresce na terra que pisas — podes pensar
Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito, acredita
Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor,
Que a magnólia — e essa é a verdade — cresce sempre
Apesar de nós.
Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema
Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado
A flor que se abrir é já um pouco de ti.
E a flor que te estendo,
Mesmo que a recuses
Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame,
A colherei.

A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra
E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão.

Daniel Faria
in Dos Líquidos



CONSERTO A PALAVRA

Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio
Restauro-a
Dou-lhe um som para que ela fale por dentro
Ilumino-a

Ela é um candeeiro sobre a minha mesa
Reunida numa forma comparada à lâmpada
A um zumbido calado momentaneamente em exame

Ela não se come como as palavras inteiras
Mas devora-se a si mesma e restauro-a
A partir do vómito
Volto devagar a colocá-la na fome

Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza
Como um homem nadando para trás
E sou uma energia para ela

E ilumino-a

Daniel Faria
in Homens que São como Lugares Mal Situados

MEMÓRIA IMPERFEITA








Fernão de Magalhães Gonçalves (1943-1988)
nasceu em Jou, no concelho de Murça,
Trás-os-Montes.




STABAT MATER I

Um dia (talvez um dia só) eu fui menino
era de tarde e havia sol (há sempre sol na
memória de ver-te a cada instante
vigilante aos
prodígios do meu próprio destino)

e eu joguei no Largo à minha idade
aos arcos e aos piões aos
polícias e ladrões e
à pura liberdade

e não voltei ao Largo hoje
resta a árvore bravia que me fiz
o caule que construiu a sua história
mudando a tua memória no
ar que respira e na raiz.


STABAT MATER II

Um dia deixaste de poisar os olhos sobre os objectos
próximos e demorava-los nos cantos altos e nas junturas
do telhado.
os teus gestos de levar o lenço às pálpebras esvaziavam-se
da consciência do momento em que o xaile negro te caía
de um ombro e ias mergulhar-te na escuridão do quarto.
nas rugas da tua boca desenhava-se para sempre a atitude
de presenciar aquela hora em que se cumpriu a tua solidão.

um dia deixaste de ir e vir da cozinha para o quarto dele
com esse andar pesado e atento de quem conhecia cada tábua
do soalho e a calcava com pressão diferente.

olhavas a figueira do pátio que secara sem explicação.

um dia desceste os quatro degraus da varanda
antiga e foste chorar voltada para a parede branca.

rio de silêncio sem margens sem origem.


VIZNAR
Poema dedicado a Federico Garcia Lorca

E quando eu chegar ao fim das
minhas angústias e desejos e o
tempo se fechar e o sol se enfim puser

cobri-me com terra e ervas areia algumas
flores no meio de um caminho

que restem da memória que ficou
as pegadas casuais
breves e desiguais de
ali ter passado alguém que ainda não voltou.


Fernão de Magalhães Gonçalves
(in Memória Imperfeita)

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

LÚDICO








CLÁUDIO LIMA
natural de Calvelo, Ponte de Lima,
onde nasceu a 6 de abril de 1943.




não nos espera mais do que esta hora
que ademais é nossa por acaso
- melhor fora ó musa melhor fora
desejar apenas um destino raso

a fama é um fumo, se evapora
na penumbra funesta do ocaso
- melhor fora ó musa melhor fora
de loas e olés não fazer caso

fechar por dentro a porta da ilusão
rilhar um magro e resseco pão
fazer vénias e estrume, servil jogo

melhor fora talvez a servidão
não fosse sina ó musa dizer não
deste rebelde roubador de fogo

Cláudio Lima
(in Itinerarium III)


terça-feira, 22 de novembro de 2011

NAU DOS CORVOS







A Nau dos Corvos
Cabo Carvoeiro



Ah praias desoladas! Quanto frio
se estende pela areia junto ao mar
por baixo de um dossel de céu sombrio!
Agosto, que memórias me vens dar!

Acaricio as rugas dos penedos
altivos. São padrões de descobertas
onde deixei estrias dos meus dedos.
Berlengas na lonjura, ilhas desertas…

Um corvo sobre a nau, tenor antigo,
ensaia e canta a mesma serenata.
Não pára de cantar, ali cativo,
ao som das ondas com bordões de prata.

Varanda de Pilatos. A verdade
é dura como a pedra e fria arde.


Abel da Cunha

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

SINCERIDADE









BOCAGE
1765-1805



Se tivesse escrito um Régio poema,
de verdade, puro, íntimo e Só,
sofreria . como Torga - o dilema
da fidelidade bíblica de Job.

Tantas coisas escondidas eu diria
- como diz Florbela - para toda a gente;
e . como Pessoa - outras fingiria,
ao fingir de tudo tão completamente.

Tal o mundo de Camões, estou mudado.
Não me vale ser um fingidor agora
que melhor é desejar esquecimento.

Mas, se o poema fosse alcançado,
pediria o rasgassem - como outrora
pediu Bocage em último lamento.


Abel da Cunha

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

PARÁBOLA









Vitral da
Catedral de Estrasburgo




Fernando Pessoa, em carta a Casais Monteiro, disse que a
poesia é o "sorriso das letras".
Por sua vez, Goethe escreveu, numa parábola, que os
"poemas são como cristais pintados".
Que bom podermos entrar num poema e sentir
a alegria das palavras e o esplendor das cores!

Abel da Cunha



PARÁBOLA

Poemas são como vitrais pintados!
Se olharmos da praça para a igreja,
Tudo é escuro e sombrio;
E é assim que o Senhor Burguês os vê.
Ficará agastado? - Que lhe preste!...
E agastado fique toda a vida!

Mas - vamos! - vinde vós cá para dentro,
Saudai a sagrada capela!
De repente tudo é claro de cores:
Súbito brilham histórias e ornatos;
Sente-se um presságio neste esplendor nobre;
Isto, sim, que é pra vós, filhos de Deus!
Edificai-vos, regalai os olhos!


J. W. Goethe (1749-1832)
Versão portuguesa de Paulo Quintela

sábado, 12 de novembro de 2011

IMPOSSÍVEIS ESTRELAS












Onde estão as estrelas d'outras horas
enchendo as noites quentes do verão?
Agora aonde estão?
Quem desafia no céu tecendo auroras?

Agarrava nos dedos a guitarra
e cantava segredos às estrelas.
Mas elas já não abrem as janelas
ficando o céu escuro como a terra.

Ouvindo as serenatas ao luar
desceram os amantes a beijar
morrendo umas das outras com ciúme.

Deixaram de ser lâmpadas ardentes
e como virgens loucas decadentes
aos homens pelas ruas pedem lume.

Abel da Cunha

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

NENÚFARES





O lago tem a face colorida
com flores de nenúfares emergentes.
Volteiam sobre a água dando vida
as libelinhas de asas transparentes.

Abóbada azul coroa a terra
ornamentada com pequenas nuvens.
Ah que mistérios íntimos encerra
o lago recoberto de nenúfares!

Atiro a brincar uma pedrinha
a ver se surpreendo a libelinha
que bebe gotas de água numa flor.

Mexem as asas num breve tremer.
Faz equilíbrio... Sem desfalecer
lá vai vencendo a sede e o calor.


Abel da Cunha

PALAVRAS PARA QUÊ












As palavras são um muro arruinado
onde pinto imagens vindas do passado
com a cor da hera persistente e triste.

O Parnaso tem as portas encerradas
e as excelsas musas já desencantadas
vivem no real que diferente existe.

Leio o mundo e repasso devagar
as palavras novas numa ladainha
de invocar as coisas. Oh se fosse ainda
o meu estro verde e verde o meu cantar!

Mas tudo é mudado, tudo é incerto!
Outra a partitura. Sobem outras árias
de modulações distantes e contrárias...
Sinfonia concertante ou desconcerto?

Abel da Cunha



segunda-feira, 7 de novembro de 2011

LAMENTO DE LUIS DA BAVIERA











Onde deixaste, amor, o teu primeiro véu
Que vi esvoaçar ao vento a cada passo?
Mesmo teu corpo, que apertava num abraço
Sem tempo, há quanto tempo desapareceu!

O reino que sonhei apenas sonhos deu.
O trono está vazio. No chão, desfeito o laço
E o anel do amor perdido. Ecoa pelo espaço
A longa dissonância que me enlouqueceu.

Onde era luz agora é cor demais impura
E a noite é apagada com estrelas vãs.
Vou levantar mil torres de infinita altura

Num paço de marfim em que tu morarás.
Não tardes, meu amor. Com imortal ternura
Te cingirei rainha. E tu me vencerás.

Abel da Cunha

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

AL BERTO



AL BERTO
1948-1997
(Retrato de Paulo Nozolino)

a escrita é a minha primeira morada
de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se
por trás das palavras




RETRATO DE FUGITIVO POR PAULO NOZOLINO

caminha pela solidão nocturna dos quartos de hotel
e de fotografia em fotografia chega exausto
ao minucioso poema a preto e branco
mas já não o surpreende a violenta visão do mundo
este lento destroço que um líquido sussurro de prata
revela a partir de iluminada fracção de segundo

e bebe
e ama
e foge de si mesmo
com a leica pronta a ferir como uma bala ecoando
no fundo da memória um néon uma pedra
uma arquitectura de luz e sombra ou um deserto
onde se debruça para retocar os dias com um lápis
na certeza que sobreviverá a estes perfeitos acidentes
a estes restos de corpos a pouco e pouco turvos
pelo tempo pelo sono ou pela melancolia

mas regressa sempre à transumância das cidades
quando a alba do flash prende o furtivo gesto
sobre o papel fotográfico morre o misterioso fugitivo
depois
vem o medo
que se desprende do olhar imobilizado e do rosto
nasce uma vida de infinito caos


HÁ-DE FLUTUAR UMA CIDADE

há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado




por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração.
mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade


DIZEM QUE A PAIXÃO O CONHECEU

dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos

TEIXEIRA DE PASCOAES



TEIXEIRA DE PASCOAES
1877-1952
(Retrato de Columbano)


Vem do Marão, alta serra,
O luar da minha terra.





VIDA ETÉREA - A Sombra Humana - 1906

Quando passeio ao longo dos caminhos,
Batem asas de medo os passarinhos;
Escondem-se os reptis no tojo em flor,
Minha presença espalha um trágico pavor
Nas pobres criaturas
Que vivem neste mndo, assim como às escuras!

Avezinha fugindo ao ruido dos meus passos,
Se o que eu sinto por ti, acaso, pressentisses,
Tu virias fazer o ninho nos meus braços...
Virias ter comigo, ó pedra, se me ouvisses!


CANTOS INDECISOS - V - 1921

O Poeta é um doido errando sempre além,
Que d'este mundo, em vida, se desterra...
É o ser divino e pálido que tem
Na alma toda a luz, no corpo toda a terra.

ÚLTIMOS VERSOS - Paraísos - 1953

Temos dois paraísos: o da infância
E o da velhice;
O da flor e o do fruto,
O da loucura e o da razão.
O Jardim e o Pomar,
A Primavera, Deusa helénica,
O Outono, Deus da Ibéria.
O resto é Inverno até à Groenlândia
E Verão até ao Cabo.


DISPERSOS -Poema - 1953

Feita de sol é a carne que nos veste
Os ossos, que são feitos de luar.
E a nossa alma é sombra
A sonhar e a pensar, conforme é dia
Ou noite, pois em nosso pensamento
Esplende o sol.
Mas ao luar é que se expande
O nosso dom fantástico, esse voo
Sem fim do nosso ser
Que ultrapassa as estrelas

E alcança além do espaço a eternidade.
E o infinito, além do espaço,
E Deus, além dos deuses.